O movimento da água tonteia.
Prefiro a terra firme,
esta procura constante,
por um chão estável e seguro.
Chego a margem, um barranco,
e o coração bambeia. A vista
procura a árvore grossa,
nossa irmã, ali fincada firme,
para aguentar, evitar, a sensação
de ser levado embora, deixar de ser.
A água é nossa mãe, nela surgimos,
crescemos em mil formas,
variamos, mudamos e somos.
Mas seu ir e vir nunca parando,
amedronta, desequilibra
e lembra que nos movemos sempre.
Nós também nunca ficamos quietos.
O homem, o ser sapiens,
desde que andou sobre os pés
e liberou as mãos pra falar
saiu pelo mundo se fatigando,
um rio criando novos leitos
a cada tempestade e mudando.
Este movimento sem fim afligia
tornava a alma incerta e doida.
Olhando você que vai e vai
volta o medo daquele tempo
em que era um coletor e caçador,
atividade incerta, parenta da morte.
Firmo as pernas, te encaro,
e te vejo como és, detalhes.
Redemoinhos, ondas, correnteza.
Marulhos, remurejos e golfadas
em cores ocre, marrom e alanrajado,
mistura de tons terrosos
do barro que arrastas
e do qual também viemos, fomos feito.
Tanto procuraram os filósofos
pelo elemento fundamental:
seria fogo, ar, terra ou água?
Olha você, tens tudo em ti,
nenhum elemento te é superior.
Nada mais consigo ver.
O céu tão lindo de janeiro
é só um espelho teu, vago,
os morros, longe, são um borrão verde,
um contraste teu.
És um corpo d'água volumoso,
inchado, prenhe de esperança.
Teu tamanho amedronta.
É difícil ver a outra margem,
teu outro lado, nem melhor
nem pior, poderoso, que puxa,
arranca, derruba e mata.
Tua força, rio cheio, teu poder,
passa majestoso, não corre
pois não tem pressa. Dominas.
Boiam gigogas aflitas, trementes,
numa marcha triunfal.
Procuro um corpo, a carcaça,
do gado afogado, inchado,
do cão desprotegido, ou gato,
a cara enfiada na barrela,
mas não os vejo, escondes,
não queres a fama de assassino.
A custo devolves os mortos.
Quem é tirado de ti vira notícia.
É mal para quem procura simpatia
e tu, meu rio, na era do marquetim,
também pensa na imagem.
Não quer ser mais a lixeira
queres ser o remanso do pescador,
o recanto dos namorados,
a fonte de águas puras, de vida.
Mas não é o que se vê.
Nem paz nem mansidão
combinam com teu torvelinho.
Troncos e galhos mergulham,
somem, pulam e aparecem
num corcoveio de fogosos cavalos
a força contidos por teus braços.
Nenhum faraó na sua glória
conduziu tantos vencidos
e nem César em triunfo entrou
em Roma, a bela cidadela,
com tantos e variados prisioneiros.
Caudal imenso avanças sobre tudo.
Quem agarras está perdido.
Tu os conduzes céleres
sem dar tempo para o adeus
dos que foram deixados para trás.
Quem está a margem treme e reza,
suplica para ficar, restar.
Esquecem quem foi, quem levastes
mesmo que seja por um pouco,
o tempo de buscar forças
e fugir a tua presença devoradora.
Felizes os que te vêem chegar
durante a luz clara do dia.
A noite teu troar aumenta,
zuni aos ouvidos teu arrastar de tudo,
e sob o manto das trevas
redobra o pavor do homem
que puxa mulher e filhos
chapinhando nas águas que sobem
desmedidas e bendizendo ao Pai
que confuso amaldiçoa.
Ribeirinhos fogem aos tropeções,
largam tudo para trás.
O que pensavam ser suas vidas
abandonam para reter a vida.
Tropegamente correm de ti.
És o vingador divino,
moinho que esmaga e esmiuça.
Metes medo. Muito medo.
Desenrolas águas e mais águas.
Então, temente, diante de ti
o homem reflete e se penitencia.
Por tempos imemoriais
nos fixamos em tuas margens.
Cortamos tua vestimenta colorida.
Serramos árvores para levantar
nossas choupanas e taperas,
e escavamos troncos para canoas.
Deixamos nuas tuas costas.
Solta, a terra desbarrancava,
alargavas teu leito, crescias,
mas com o fundo mais raso,
diminuias, definhavas sempre.
Bebiamos tuas águas claras,
mas jogando nelas nossa merda,
um lixo cada vez mais porco,
sujamos o que bebiamos,
a morte passou a andar ao teu lado.
Fomos nós que te envelhecemos.
Tornamos tua corrente alegre
e saltitante em um esgoto feio,
de águas paradas e doentias,
onde as doenças se escondem
e de tocaia pegam nossas crianças.
Viemos de tuas águas, elas são
nossa mãe, mas tanto a maltratamos
que se tornou devoradora dos filhos.
Agora, com medo, te vejo passar.
Mas creio firmemente que podemos
fazer as pases contigo, rio velho.
Acredito que ainda em minha vida,
que escorre também há bem tempo,
verei as pessoas te respeitarem,
os filhos serão ensinados desde cedo
a não macular teu leito e a olhar
tua corrente com consideração.
Pescadores virão às tuas margens
tirar o peixe essencial para a panela
e os namorados deixarão os shopins
e se debruçarão nas pontes,
a luz prateada da lua ou sob as belas
cores do entardecer que tingem
tua superfície de um arcoires
e te vendo passar por baixo,
e faz isto desde o tempo de seus pais,
seus avós e tetravós, prometem,
de mãos dadas, de rostos colados
e com os corações bem juntos,
que seu amor continuará fluindo
de um peito arfante ao outro tenso,
que durará tanto tempo quanto tu.
Te vejo passar apressado, louco
e transbodante, e temo, mas sei
também que logo estarás manso
e deslisando sossegado e calmo.
Fique sempre conosco belo rio,
rio Paraíba do Sul.